sexta-feira, agosto 27, 2010

da gorgonização do amor.

Eu costumava andar por campos de girassóis, apreciando a cor dourada do pôr do sol, hora em que você costumava sair para dançar entre as flores, sorrindo e girando para saudar a noite iminente. Bailava entre o brilho dos vagalumes, e era para mim a visão mais reconfortante e compensadora de todas, te ver ali feliz a sorrir e cantar, o coração pleno de alegria. Naquele breve momento, eu te amei primeiro.
E então você me viu, e seu semblante mudou. Você acelerou o passo, girando rápido, espantando os vagalumes e derrubando os girassóis. Eu não entendia a razão da sua fúria, queria te abraçar e dizer que não, que era tudo simples, que bastava para mim te ver dançar. Queria te pegar no colo e cuidar dos teus delírios, mas você trouxe a tempestade. Ela chegou no início da noite sem lua, com seus ventos de egoísmo e trovões de insegurança, e de repente não havia mais campo, não havia girassóis e vagalumes. Súbito, o que dançava agora eram cinzas e destroços, varrendo os campos sem luz onde antes havia amor. Eu quis gritar, mas você levou a minha raiva. Quis chorar, mas não havia mais dor. Nunca mais flor, dança, alegria.
Veio a chuva, como lágrimas derramadas tarde demais, e as cinzas dos campos se mesclaram à agua, o cheiro da terra queimada virando lama, tudo sujo, sujo, sem vida. Você foi embora, levou consigo meu amor pelas coisas do mundo, e agora eu adorava aquela podridão, aquela sujeira impregnada em meu corpo. Eu quis gritar, mas a lama me sufocava, me privando de voz, visão, movimento. Cessou a chuva, a noite se foi e a alvorada não trouxe consolo algum a uma estátua num campo de cinzas.

terça-feira, agosto 24, 2010

sem Elana

A primeira coisa que percebeu quando despertou foi o lençol branco cobrindo seu rosto.
Pela luz que vinha de fora, ainda era manhã. Tentou levantar subitamente sem sucesso, a preguiça da noite anterior em seu corpo. Abriu os olhos, movendo devagar o lençol que os cobria, para que a luz entrasse sem ferir. Tateou a cômoda em busca do maço de cigarros, acendendo um enquanto se sentava. Gostava de fumar antes de qualquer coisa, sentir a fumaça queimar a garganta enquanto os pensamentos voltavam ao lugar e a realidade se construía esperando um novo dia.

Olhou com vaga tristeza para o lado vazio da cama. Sentia falta dela, admitiu, mais como confirmando um fato concreto que lamentando a dor da perda.

"Preciso de café. Forte."

Levantou procurando a cozinha, percebendo o quarto bem maior do que costumava ser com as coisas dela jogadas, o projetor naquele canto dando pra parede da cama, os livros na estante, as roupas jogadas pelo chão.

Era dessas mulheres de personalidade forte, fortes convicções. Certa vez discutiram quando ele disse preferir Anaïs à Beauvoir. Era assim, e no entanto serena. Gostava daqueles olhos tranquilos e daquele jeito preguiçoso de fazer as coisas que ela tinha, da forma como ela tremia e sorria de nervoso, quando estavam juntos. Gostava dos arroubos de sinceridade física, dos beijos no rosto e dos abraços em bancos de praça. Os cigarros roubados e os filmes do Bergman. As doses de tequila que ele ensinou a beber. As madrugadas perdidas no msn, a vontade de estar sempre junto.

"...hoje eu bebi duas xícaras de café. Você alterou minha realidade."


Ficou ali parado fumando enquanto as lembranças se misturavam ao barulho da cafeteira. E se deu conta de que preferia mate.

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"Eu gosto do teu silêncio.

Me diz muito mais do que imagina.

Palavras podem ser perigosas, guria. É um belo ato de coragem cultivar silêncio.
O mundo é barulhento, é perturbador. Quanto de silêncio você pode ouvir agora, se parar pra tentar? É como harmonizar uma canção fora do tom, é bonito. Te faz autêntica, te torna rara.

Eu gosto do teu silêncio."


(22/07/2009)

quarta-feira, agosto 18, 2010

pré-lúdico

Existe nesse momento, em algum ponto do multiverso, alguém pensando em você. Alguém que nasceu e cresceu. Teve experiências, desilusões, sonhos, expectativas, frustrações. Experimentou a dor e a felicidade. Alguém que é, em quase todos os aspectos, bastante parecido com você.

Essa pessoa não tem conhecimento da sua existência. Pensa que está apenas imaginando alguém. Esse pensamento a conforta, porque a faz menos solitária. Entenda, ela é apenas uma criança que acabou de sentir a dor da perda, ainda não compreende os designios do mundo. Se sente traída pelas pessoas em quem confiava, pois elas mentiram na intenção de preservar os sentimentos dessa criança. É um duro golpe para ela, ter de lidar com a perda e com a traição tão cedo na vida, e esse acontecimento vai definir a maneira como ela lida com o mundo nos anos futuros.

Mas a despeito de todo o sofrimento que começa a brotar, ela pensa em você. Sente e deseja estar com você, como sente e deseja estar com os aspectos mais belos dela mesma. Em você ela projeta os sentimentos mais nobres, mais amorosos. Ela viverá muitos e muitos anos ainda, embora em determinado momento essa idéia fique trancada em um cofre num sótão de sua mente, como a memória tênue de um algo meio esquecido. Por agora, tudo que ela queria era ter você, e um sorriso brota entre as lágrimas da criança. Uma mistura de felicidade e ironia, feito a lembrança de um sonho bom que não deveria acabar quando despertamos nas horas preguiçosas das manhãs de sábado.

Você ainda não existe, mas em breve chegará. Vai nascer e crescer e ter sonhos e desilusões e expectativas e frustrações como a criança que te sonha, e vai pensar que talvez em algum lugar exista alguém, da mesma maneira que ela faz agora. Você vai viver e encontrar alguém que será de muitas maneiras parte dessa história, alguém que também não existe nesse momento, mas que canta e desenha em algum plano irreal, esperando o dia em que todos os personagens que valem a pena se encontrarão e se amarão para sempre, e nunca, nunca mais esquecerão um do outro. Por agora, nenhum dos fantásticos personagens deste conto tem consciência disso. São apenas idéias dentro das idéias um do outro.


E talvez isso seja amor.

sexta-feira, agosto 06, 2010

before cookies

Era um mundo de mentira.
As cores não tinham alma. As possibilidades apontavam para ruas desoladas que não se ligavam à nada. O amor, só acontecia para que a dor pudesse existir, e os sorrisos, falsos sorrisos de pessoas prontas a agredir e machucar.

Era um mundo cruel, estranho e desconfortável como uma roupa que não nos cabe.

Até aquele dia, em que ela veio, e o levou pela rua das flores, e disse sobre as belezas da vida e a poesia do mundo. E ele disse sobre o encontro de almas e a alegria sem jeito do abraço. E então, à luz nostálgica do entardecer, eles entenderam.

E tem sido assim, desde então.